Imagine uma criança surda em sua primeira aula na escola regular. A professora fala com a turma, aponta para o quadro e faz perguntas — mas nada daquilo parece acessível. A criança observa os colegas com um sorriso confuso, no esforço de interagir. Esse é o ouvintismo em ação: um sistema que força o silêncio de quem não ouve. Sem Libras, sem intérprete, sem apoio, ela não entende, nem aprende. Sente-se invisível.
Pesquisas apontam que mais de 10,7 milhões de brasileiros apresentam algum grau de deficiência auditiva. Ainda assim, a acessibilidade comunicacional continua sendo uma barreira em escolas, empresas e serviços públicos. A Lei nº 10.436, de 2002, reconheceu a Libras como meio legal de comunicação e expressão, mas o preconceito estrutural contra a cultura surda persiste, muitas vezes de forma silenciosa e institucionalizada.
Tratar a surdez como uma ausência a ser superada, e não como uma diferença a ser respeitada, alimenta práticas excludentes. Ouvintismo, audismo e preconceito linguístico revelam uma sociedade que ainda não aprendeu a ouvir quem se comunica de outra forma. Para entender como essa lógica se manifesta e o que podemos fazer para enfrentá-la, é preciso nomeá-la com clareza e reconhecer o que é o ouvintismo.
O que é ouvintismo?
Ouvintismo é uma forma de preconceito estrutural que considera a audição como norma e sinônimo de superioridade. O termo foi incluído na seção “Nova Palavra” da Academia Brasileira de Letras, marcando seu reconhecimento no vocabulário acadêmico e social. Ele nomeia práticas que invisibilizam a cultura surda e impõem padrões auditivos como universais.
Esse preconceito se manifesta ao exigir que pessoas surdas se adaptem ao mundo ouvinte — com aparelhos auditivos, leitura labial ou oralização — sem garantir Libras, intérpretes ou acessibilidade digital. Muitas vezes, a exclusão é sutil, como na recusa de uma contratação por “falta de comunicação” ou na ausência de intérprete em eventos.
A cultura ouvintista parte da ideia de que ouvir e falar são os únicos meios válidos de interação. Fábio de Sá, educador surdo e especialista do ICOM, lembra que “durante muito tempo, surdos foram obrigados a fazer fonoaudiologia. A Libras era proibida”. Já José Antônio de Sá, escritor surdo, afirma que o ouvintismo está nas pequenas atitudes. Para ele, “os ouvintes, muitas vezes, não se educam para respeitar os surdos de forma justa”.
O que é o surdismo?
O surdismo é uma resposta política e cultural ao ouvintismo. Reconhece a surdez não como deficiência, mas como uma diferença linguística, social e identitária. A Libras é valorizada como primeira língua, e a comunidade surda é compreendida como um grupo cultural com modos próprios de existência.
Mais do que um conceito, o surdismo é uma vivência coletiva que desafia a lógica da correção e afirma outras formas de ser e comunicar. Como diz José, “nem toda pessoa com deficiência auditiva se reconhece como parte da comunidade surda”. Essa distinção é central para compreender o surdismo como resistência.
Por sua vez, o educador Carlos Skliar (1998) defende que a surdez deve ser pensada a partir das diferenças, e não da falta. E para a pesquisadora surda Karin Strobel (2008), “a surdez é uma diferença que fala”. Esses autores sustentam uma visão afirmativa da identidade surda, que se expressa por meio da Libras, da cultura visual e da luta por políticas bilíngues inclusivas.
O que é o audismo?
Audismo é a crença de que pessoas que ouvem são superiores às que não ouvem. O termo foi cunhado pelo educador Tom Humphries em sua tese de doutorado, nos anos 1970. Mais do que um preconceito individual, trata-se de uma ideologia de poder que associa audição à inteligência e competência. Nesse olhar, ser surdo é visto como déficit — e não como variação legítima da experiência humana.
Essa ideologia se manifesta em práticas que impõem adaptação à norma ouvinte: uso compulsório de aparelhos auditivos, proibição histórica da Libras e priorização da oralização em vez da comunicação visual. Nesse contexto, ouvir torna-se sinônimo de normalidade, enquanto a vivência surda é desvalorizada como incompleta ou inferior.
Diferentemente do ouvintismo, que se expressa culturalmente em hábitos e linguagens, o audismo atua como uma estrutura institucional. Está presente em políticas públicas que ignoram a Libras, em diagnósticos que anulam identidades surdas e em representações midiáticas que reforçam estigmas. Trata-se de uma exclusão que opera por normas, silêncios e decisões técnicas.
Fábio observa que o audismo aparece até em elogios sutis, como “que bom que você fala bem”, como se o valor da pessoa surda dependesse de se aproximar da norma oral. Enfrentar essa lógica é reconhecer que existem múltiplas formas legítimas de se comunicar — e nenhuma delas é superior às demais.
O que é o privilégio ouvinte?
O privilégio ouvinte é uma forma de vantagem estrutural que passa despercebida por quem escuta, mas impacta diretamente a vida de quem não escuta. Ele se manifesta na naturalização da comunicação oral como única via legítima de interação, invisibilizando outras formas de expressão, como a Libras. Esse privilégio está tão enraizado que muitos sequer percebem que o mundo foi desenhado para quem ouve.
No cotidiano, ele aparece em ações simples: um aviso sonoro no metrô sem alternativa visual, uma entrevista de emprego sem intérprete, uma aula sem recursos acessíveis. São situações em que a normatividade auditiva exclui quem depende da comunicação visual. O resultado é a perpetuação da desigualdade comunicacional e o bloqueio ao direito de participação plena.
Esse privilégio também se reproduz nas instituições. Na educação, alunos surdos enfrentam aulas que não consideram sua língua materna. No mercado de trabalho, a falta de acessibilidade afasta profissionais qualificados. Na saúde, diagnósticos e orientações são muitas vezes mal compreendidos por falta de mediação adequada. A exclusão estrutural, aqui, não é exceção: é regra.
Reconhecer o privilégio auditivo é essencial para iniciar qualquer transformação. Acessibilidade é autonomia. Por isso, tornar os ambientes acessíveis é mais do que cumprir uma norma — é romper com a lógica da exclusão e criar espaços onde todas as vozes, inclusive as visuais, sejam ouvidas com respeito.
Como é o preconceito linguístico enfrentado pelas pessoas surdas?
No premiado filme No Ritmo do Coração (CODA, 2021), há uma cena em que os pais surdos de Ruby participam de uma reunião na cooperativa onde trabalham. Sem intérprete, eles não compreendem o que está sendo discutido — apenas observam o movimento dos lábios, isolados da conversa. Ruby, sua filha ouvinte, precisa traduzir tudo, mesmo sendo adolescente. A cena é tocante, mas sobretudo real: mostra como o preconceito linguístico afasta pessoas surdas até mesmo de decisões que afetam suas vidas diretamente.
Esse tipo de exclusão é recorrente no cotidiano brasileiro. O preconceito linguístico contra usuários de Libras se manifesta quando a sociedade desvaloriza a língua de sinais e exige adaptação unilateral da pessoa surda à comunicação oral. Na prática, isso compromete direitos fundamentais e gera barreiras em áreas como educação, trabalho e saúde.
Essas barreiras se expressam em diferentes contextos:
- Na escola: com a ausência de intérpretes ou a falta de formação bilíngue dos professores;
- No aprendizado: com evasão ou formação fragmentada por falta de acesso à Libras;
- No trabalho: com exclusão de reuniões e treinamentos, mesmo quando a pessoa surda está contratada;
- Na autoestima: com a constante sensação de invisibilidade e isolamento.
Fábio de Sá, educador e especialista em acessibilidade, destaca que em muitas cidades do interior, “os surdos passam por toda a formação escolar sem Libras”. Por sua vez, José Antônio, escritor surdo, relata que “o surdo muitas vezes é tratado como invisível, por falta de acessibilidade nas reuniões”. A ausência de intérpretes ou ferramentas adequadas limita a participação ativa, dificulta o crescimento na carreira e compromete vínculos.
Felizmente, já existem alternativas eficazes para transformar esse panorama. O ICOM oferece uma plataforma de atendimento em Libras com intérpretes em tempo real, que pode ser integrada ao ambiente de trabalho com facilidade. Essa solução promove o cumprimento da lei, e também ganhos na construção de espaços mais inclusivos, onde há equidade na comunicação e cada pessoa é reconhecida em sua forma legítima de se expressar.
Quais são as consequências do ouvintismo?
O ouvintismo é um vetor silencioso de desigualdade que compromete o acesso da população surda à educação, saúde, trabalho e participação cívica. Ao impor a audição como norma e negligenciar a Libras como língua legítima, a sociedade restringe o exercício pleno da cidadania para milhões de pessoas. Essa exclusão estrutural é reforçada por políticas e práticas que ainda operam sob uma lógica oralista, ignorando as especificidades linguísticas da comunidade surda.
Impacto na saúde pública global
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 1,5 bilhão de pessoas no mundo têm algum grau de perda auditiva, e cerca de 430 milhões precisam de reabilitação, apoio com língua de sinais ou tecnologias assistivas. Esses números mostram que a deficiência auditiva não é uma condição marginal, mas uma questão global de saúde pública que exige respostas estruturais e inclusivas.
Exclusão educacional e profissional no Brasil
No Brasil, a exclusão educacional e profissional das pessoas com deficiência é evidente. Apenas 25,6% concluíram o ensino médio, contra 57,3% das pessoas sem deficiência, segundo a PNAD Contínua 2022. Mesmo com ensino superior, só 51,2% estão ocupadas, frente a 80,8% da população sem deficiência. A barreira comunicacional limita acessos e aprofunda desigualdades ao longo da vida.
Consequências para a saúde mental
Além disso, a exclusão linguística afeta a saúde emocional das pessoas surdas. Estudo publicado na Revista Brasileira de Estudos de População associa o isolamento diário em escolas, hospitais e ambientes profissionais ao aumento de sintomas de depressão, ansiedade e sofrimento psíquico, muitas vezes invisibilizados pelas políticas públicas.
Ameaça à cidadania e à justiça social
Negar a Libras é negar o direito à língua — e, com isso, à cidadania plena. Combater o ouvintismo vai além de cumprir protocolos de acessibilidade: é enfrentar uma desigualdade que fragiliza os fundamentos da justiça social, da democracia e da dignidade humana.
Como combater o ouvintismo?
Combater o ouvintismo exige mais do que empatia: requer ação estratégica e compromisso institucional. A mudança começa pelo reconhecimento de que Libras é uma língua legítima, e de que a exclusão linguística não é natural — é construída. Enfrentar o problema envolve investir em educação bilíngue, formação de profissionais e acessibilidade em todos os níveis.
Nas escolas, isso significa garantir professores fluentes em Libras, intérpretes qualificados e materiais adaptados desde a educação básica. Na saúde, é preciso assegurar atendimento com intérpretes, sobretudo em contextos clínicos e emergenciais. Já no trabalho, combater o ouvintismo implica incluir pessoas surdas em reuniões, treinamentos e decisões com apoio tecnológico e humano.
Empresas que adotaram essas práticas mostram que é possível. A Serasa Experian, por exemplo, utiliza a plataforma do ICOM desde 2019 para oferecer acessibilidade em tempo real em todas as reuniões e eventos. A Unimed Porto Alegre também relatou avanços na autonomia e satisfação de seus clientes surdos após integrar a ferramenta aos atendimentos presenciais.
Cada atitude conta. Entre as ações para enfrentar o ouvintismo, estão:
- Contratar pessoas surdas com preparo e acolhimento;
- Disponibilizar intérpretes de Libras, inclusive por vídeo;
- Adaptar sistemas internos para acessibilidade digital;
- Promover formações sobre cultura surda;
- Ouvir ativamente as demandas da comunidade surda.
Ainda que estrutural, o ouvintismo pode ser desmontado — passo a passo — por quem escolhe incluir de verdade.
Conclusão
Ouvintismo não é apenas um comportamento individual, mas um sistema que limita o acesso de pessoas surdas à educação, à saúde e ao trabalho. Ao longo deste artigo, vimos como ele impacta a cidadania, a saúde mental e a equidade social, reforçando desigualdades já presentes em nosso país. Romper com esse padrão é urgente e possível.
Empresas, instituições e profissionais podem fazer parte dessa mudança. Promover ambientes inclusivos, com acessibilidade digital e presença ativa da Libras no cotidiano, é um passo decisivo rumo a uma sociedade mais justa. Plataformas como o ICOM mostram que a inclusão com Libras é viável, prática e transformadora.
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O conteúdo contou com relatos extraídos de entrevistas exclusivas com Fábio de Sá, educador surdo e especialista em acessibilidade do ICOM; José Antônio de Sá, escritor surdo e autor do livro O Despertar de uma Mente Silenciosa.