Existem pessoas com deficiência desde que o mundo é mundo. E, consequentemente, existe o capacitismo, que foca os corpos e mentes atípicos, fora do padrão vigente.
A partir do momento que nasce um ser humano, nasce juntamente a possibilidade da existência das diferenças na constituição fisiológica, química e cognitiva. Afinal de contas, somos elementos constituintes da natureza, onde não existem padrões ou cópias. Estes são conceitos inventados pelo ser humano a partir da criação de máquinas que passaram a nos permitir a replicação de objetos. O ser humano não é replicável.
Além das diferenças inatas, que incluem as malformações congênitas, este mesmo ser humano pode adquirir alguma deficiência por conta de doenças ou acidentes. Ou seja, as “imperfeições” são naturais e fazem parte da natureza humana.
Mas, como tem sido a prática do capacitismo no século XXI? De que forma ele tem se manifestado atualmente? E o que podemos fazer para combater seu avanço em nossa sociedade e garantir uma vida digna às crianças, jovens e pessoas adultas com deficiência?
O que é capacitismo?
O capacitismo é toda e qualquer forma de preconceito em relação às capacidades da pessoa com deficiência. É, portanto, considerada uma prática de violência contra a população com alguma deficiência, e ela se manifesta de variadas formas, algumas de forma inconsciente e outras de forma intencional.
O capacitismo se faz presente também nas várias dimensões da vida, como na educação, na arquitetura, na comunicação, nos métodos, nas legislações e principalmente nas interações pessoais, atacando tanto as deficiências de origem física, apoiada na antiga e defasada ideia da corponormatividade trazida pela Filosofia Greco-Romana, quanto de origem sensorial (visão e audição) e mental (intelectual e cognitiva).
Segundo a ativista, autora e cineasta Simi Linton, em sua obra My Body, o “capacitismo é um sistema de discriminação e exclusão que marginaliza pessoas com deficiência ao considerá-las inferiores física, intelectual ou emocionalmente.”
Linton traz essa abordagem do corpo com deficiência não apenas como uma questão social, mas política. Importante se ter em mente que, assim como o racismo, o capacitismo também é estrutural e estruturante. Como a própria Linton o define, é um sistema de discriminação e exclusão. E esse sistema existe há séculos e é alimentado ao longo do tempo pela ignorância, pela apatia e também pela maldade de pessoas sem deficiência.
A definição de capacitismo trazida pela autora e ativista Rosemarie Garland-Thomson, que, assim como Simi Linton, também é uma referência na luta pelos direitos da pessoa com deficiência nos Estados Unidos e no mundo, reitera a complexidade da natureza e dos impactos devastadores do capacitismo. No seu artigo Integrating Disability, Transforming Feminist Theory, Garland-Thomson argumenta que o “capacitismo opera como um sistema cultural que valoriza certos corpos e mentes como normais, produtivos e desejáveis, ao mesmo tempo em que marginaliza outros.”
O que é ser uma pessoa capacitista?
Diz-se que uma pessoa é capacitista quando ela fala ou age de forma que transmita a ideia de que corpos e mentes de pessoas com deficiência são menos capazes, são inferiores, menos valiosas.
Muitas vezes, essas atitudes capacitistas são automáticas, não intencionais, e que a pessoa faz sem se dar conta dos danos que pode gerar. Isso acontece justamente por ser um mal estrutural, que está nas entranhas e nas regiões mais profundas do consciente coletivo de uma sociedade e que é passado de geração a geração.
Uma pessoa pode ser considerada capacitista pela simples forma como olha para outra pessoa com deficiência. Segundo Rosemarie Garland-Thomson, é um olhar diferente dos demais, que carrega uma arrogância peculiar e um sentimento de superioridade. Algumas pessoas a olhar para corpos com deficiência como “espetáculo”, movidas por curiosidade ou até mesmo um sentimento de piedade. Esse olhar, que Garland-Thomson chama de “encarar” (staring), é violento e causa desconforto de forma automática na pessoa que está sendo encarada, é político e historicamente construído gerando desconforto.
Para a pensadora, o capacitismo é construído e alimentado dessa forma silenciosa, pelo “encarar”, que pode ou não vir acompanhada de falas negativas, pejorativas e cheias de julgamentos. O “encarar” é uma ferramenta de poder usada por pessoas sem deficiência como uma manifestação de controle e normatização de corpos como se dissesse: “esse corpo não é bem-vindo aqui, você não pertence a esse lugar”.
Além do olhar, existem falas e/ou ações capazes de menosprezar a pessoa com deficiência, que vão desde fazer brincadeiras com as características físicas, sensoriais ou cognitivas de uma determinada pessoa, passando por ignorar ou oferecer tratamento inferior, até maltratar, ofender ou agredir física ou psicologicamente uma pessoa com deficiência.
O que é capacitismo no Brasil?
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, conhecida também como LBI ou Estatuto da Pessoa com Deficiência, é clara ao configurar os atos de capacitismo, apesar de não mencionar em nenhum momento o termo “capacitismo”.
A Lei fala em “discriminação em razão da deficiência”, que é uma forma resumida para definir esse ato criminoso.
Em seu artigo 4:
“considera-se discriminação em razão da deficiência, de toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.”
Por este trecho da LBI, fica evidenciada a abrangência que a legislação vigente trata comportamentos e atos capacitistas.
Incapacitismo e deficientismo
Para o professor, consultor e autor Romeu Kazuo Sassaki, que deixou para o Brasil um legado riquíssimo de estudos, pesquisas, livros e artigos traduzidos para nossa Língua, o capacitismo convive com outros dois conceitos: o incapacitismo e o deficientismo.
Sassaki foi um dos primeiros consultores a difundir no Brasil o conceito de inclusão plena e a importância da mudança de paradigma para o combate estruturado do capacitismo, saindo do modelo médico-assistencialista para o modelo social da deficiência.
Em seu artigo Capacitismo, incapacitismo e deficientismo na contramão da inclusão, Sassaki explica que “o capacitismo está focalizado nas supostas ‘capacidades das pessoas sem deficiência’ como referência para mostrar as supostas ‘limitações das pessoas com deficiência’. No capacitismo, a ênfase é colocada nas supostas ‘pessoas capazes’, as quais constituem a maioria da população e são supostamente consideradas ‘normais’.”
Os conceitos de incapacitismo e deficientismo, que são termos sinônimos, surgem então do trabalho incansável e determinado do professor Sassaki. A partir de suas observações, Sassaki percebe que as pessoas com deficiência também carregam uma perspectiva de suas deficiências a partir da interação com pessoas sem deficiência.
Desta forma, o incapacitismo ou deficientismo atuam inversamente à definição do capacitismo tradicional, uma vez que “está focalizado nas supostas ‘limitações das pessoas com deficiência’ como referência para mostrar as supostas ‘capacidades das pessoas sem deficiência’”. Neste caso, a ênfase está nas pessoas com deficiência, com suas “supostas anormalidades”. O deficientismo ou incapacitismo também é chamado de capacitismo internalizado, por alguns outros autores internacionais.
Fatores históricos e sociais para a incidência de pessoas com deficiência no Brasil
Analisando a história de nosso país, desde a época de sua colonização, conclui-se que a incidência de pessoas com deficiência no Brasil, que atualmente é de cerca de 9% da população, seja resultado da combinação de fatores históricos, sociais, econômicos e políticos.
Apesar de o Brasil não ter sido pautado por guerras civis e de não ter participado ativamente das duas Grandes Guerras, como é o caso dos Estados Unidos, por exemplo, o país travou outros tipos de batalhas que marcaram a realidade das pessoas com deficiência.
O fato de o Brasil ter sido uma colônia com propósitos claros de servir ao governo português como território de exploração de suas riquezas deu início a uma história devastadora de dominação, opressão e exclusão de milhões de famílias nativas, que passaram a passar por muitas necessidades básicas, como falta de comida, segurança, afeto e abrigo. Nascia a desigualdade social em terras brasileiras, que fez eclodir a pobreza, a segregação e o apagamento racial em poucas décadas.
Hoje, sabe-se que é a má nutrição, aliada à carência de cuidados pessoais e de saúde, é um fator para o surgimento de doenças, que podem estar associadas a más formações, mal funcionamento de órgãos ou outras limitações de ordem física, sensorial ou mental. São, portanto, mais de 500 anos da aplicação de um sistema violento e exploratório, cujas sequelas vêm desde o período colonialista até os dias atuais.
A desigualdade social aumentou e a falta de acesso a condições básicas para uma vida digna ainda são realidades para a grande maioria das famílias de pessoas com deficiência. Falta de saneamento básico, de alimentação equilibrada, de atendimento médico e recursos de saúde, somados à violência e trânsito galopantes nas cidades, transformam o contexto brasileiro em solo fértil para a perpetuação e fortalecimento das práticas de capacitismo em nosso país.
A visão dualista trazida por Sassaki, sobre a coexistência do capacitismo e do incapacitismo, portanto, é importante para mostrar os impactos da história do Brasil na relação que hoje mantemos com o tema da deficiência.
A ideia do incapacitismo ou do deficientismo traz essa perspectiva julgadora da pessoa com deficiência para consigo mesma, que se vê como vítima de tanta exploração e desigualdade século atrás de século, combinada à perspectiva também dessa pessoa com deficiência em relação às pessoas sem deficiência, que antes se traduzia na figura do homem branco europeu, mas que hoje se amplifica para uma classe social elitista e capacitista.
Quais são os tipos de capacitismo?
Atualmente, existem muitos tipos de capacitismo. Ao se procurar na literatura técnica ligada à inclusão da pessoa com deficiência, percebe-se de imediato que nenhum autor ou autora em específico classificou o capacitismo formal e estruturadamente. Muitos dos tipos de capacitismo ou foram criados e nomeados por pessoas estudiosas do trabalho de Rosemarie Garland-Thomson, com seus Disability Studies, ou por pessoas ativistas e consultoras que escrevem ou falam sobre o tema.
Eis aqui um compilado de tipos de capacitismo, com os principais nomes de pessoas que abordam cada um deles:
1. Capacitismo Estrutural
Este talvez seja a “matriz” que dá origem a todos os outros tipos de capacitismo, pois parte da ideia de que existe uma norma invisível na sociedade que cria e exige a hegemonia dos corpos e mentes padrões e típicos. É aquela ideia de que o capacitismo é um grande sistema que interliga tudo, cultura, política, econômica, leis, arquitetura etc.
Fiona Kumari Campbell, autora do livro Contours of Ableism, usa bastante esta terminologia do capacitismo estrutural como sendo “a construção social de corpos deficientes como sujeitos inaceitáveis, desvalorizados e anormais.” O capacitismo, em sua perspectiva, não é apenas um preconceito, mas uma estrutura de poder hegemônica que produz desigualdades profundas.
O sociólogo Tom Shakespeare, autor de Disability: The Basics, também faz abordagens sobre o capacitismo estrutural (embora ele não use o termo no seu livro), ao afirmar que a sociedade é construída para corpos e mentes “normais” e ao criticar a arquitetura das cidades, o modelo de sistema educacional, os processos seletivos e as leis que excluem ou dificultam a participação plena de pessoas com deficiência.
2. Capacitismo Institucional
É o capacitismo presente e que rege as instituições públicas do legislativo, judiciário e executivo e as instituições privadas, como empresas, escolas e universidades.
Muito sobre que existe hoje sobre o capacitismo estrutural e institucional no Brasil, deve-se ao trabalho muito bem desenvolvido sobre o racismo. Como o autor Silvio Almeida explica em seu livro Racismo Estrutural, “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos”.
Parafraseando Almeida, então, o capacitismo institucional é fruto de uma sociedade capacitista e é dentro das instituições que as relações de poder entre pessoas sem deficiência e com deficiência se manifestam onde as primeiras criam e impõem regras, padrões de conduta e modos de pensar hegemônicos baseados no corpo (corponormatividade) e mente (mentenormatividade) típicos ou “normais”. Basta ver o ínfimo percentual de pessoas com deficiência a ocuparem posições de liderança dentro de uma empresa para entender uma das manifestações do capacitismo institucional.
Os estadunidenses Rosemarie Garland-Thomson e David Pfeiffer possuem vários trabalhos sobre a as relações de poder e a exclusão de pessoas com deficiência em espaços formais, como escolas e ambientes de trabalho.
3. Capacitismo Atitudinal
O nosso querido e saudoso professor, autor e consultor Romeu Kazumi Sassaki foi um dos primeiros a falar de barreiras atitudinais no Brasil, nos idos da década de 1990, ligando-as à exclusão cotidiana.
Esse tipo de capacitismo refere-se à discriminação e preconceito contra pessoas com deficiência, baseado em crenças de uma pessoa ou grupo de pessoas de que corpos e mentes “normais” são superiores.
Não há como desvincular esse sistema de crenças capacitistas da eclosão de pensamentos renascentistas dos séculos XV e XVI que trouxeram conceitos como o do “homem universal”, representado pelo corpo branco, masculino, simétrico e perfeito em Homem Vitruviano, desenho de Leonardo da Vinci. Ou seja, qualquer corpo diferente daqueles criados e enaltecidos por Da Vinci, Michelangelo, Rafael, Ticiano e tantos outros artistas não era considerado ideal ou valioso.
O que dizer então de um corpo com nanismo, com amputação de membros, sentado em cadeira de rodas?
4. Capacitismo Linguístico
É aquele observado na linguagem oral, escrita e simbólica, a partir do uso de expressões e/ou termos pejorativos, com cargas negativas, que reforçam estigmas, estereótipos e preconceitos acerca das pessoas com deficiência.
Instaurado pela ONU a partir da publicação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006, o termo correto e oficial é “pessoa com deficiência”, colocando todo e qualquer termo diferente disso em desuso.
Termos como “deficiente”, “portador de necessidades especiais”, “pessoa com necessidades especiais” são, portanto, exemplos de capacitismo linguístico e que infelizmente ainda perduram atualmente.
O capacitismo linguístico não se resume apenas ao uso inadequado das terminologias e linguagem. Abrange também xingamentos explícitos, piadas, metáforas, comparações etc. Abaixo, algumas frases capacitistas:
- “Quando falei com meu esposo, ele fingiu demência”
- “Ei, cuidado! Você está surdo?”
- “Fulano é um retardado.”
- “Parecia cego em tiroteio”
- “Preciso de um braço direito na minha empresa”
- “A gente não tem braço para tocar esse projeto”
- “Que mancada você deu!”
5. Capacitismo Inspiracional (“Inspiration Porn”)
Termo criado pela humorista, jornalista e ativista Stella Young, o capacitismo inspiracional é aquele que usa a deficiência de uma pessoa como agente motivador de pessoas sem deficiência.
As pessoas que fazem uso deste tipo de capacitismo geralmente colocam as pessoas com deficiência como “guerreiras”, “vitoriosas”, “super-heróis” ou “exemplo de superação”. A seguir, algumas frases de capacitismo inspiracional:
- “É incrível o que ela faz mesmo tendo deficiência”
- “Parabéns! Você é um guerreiro”
- “Você é um exemplo de superação para todos nós!”
- “Olha o que ela faz mesmo não tendo um braço (ou uma perna)”
- “Ele é muito eficiente apesar de ser cego”
6. Capacitismo Médico
Antigamente, entre as décadas de 50 e 70, via-se a deficiência como algo a ser tratado, curado. Como se fosse um defeito ou patologia do corpo ou mente de determinada pessoa. Chama-se essa visão de “modelo médico” da deficiência e que foi superada pelo “modelo social” da deficiência, criado nos anos 80.
No entanto, a perspectiva médica ainda perdura e faz com que exista este tipo de capacitismo. Importante dizer que o capacitismo médico não está restrito à classe médica. É fato que ainda muitos profissionais de saúde trabalham com esse conceito defasado e errôneo da deficiência, mas há uma parcela da população que introjetou essas crenças e repetem nas relações interpessoais, seja no ambiente de trabalho, de lazer, de educação, por exemplo.
O trabalho de Tom Shakespeare critica os limites do modelo médico da deficiência e defende uma abordagem biopsicossocial. Lennard J. Davis, autor de Enforcing Normalcy, também rejeita a ideia da normatividade corporal e argumenta que a visão da medicina ainda reforça padrões de normalidade excludentes.
Em seu artigo “Capacitismo, incapacitismo e deficientismo na contramão da inclusão”, Sassaki explica o capacitismo médico ao argumentar que, neste caso:
“a deficiência é tida como o principal fator responsável pela não participação (não aceitação) de pessoas com deficiência nos sistemas comuns da sociedade. A deficiência é considerada um fator negativo, errado, indesejável, que precisaria ser eliminado ou, pelo menos, reduzido como condição sine qua non para que a pessoa com deficiência possa fazer parte da sociedade”.
7. Capacitismo Digital
Com o crescimento exponencial da inteligência artificial aliado à popularização da internet, nada mais esperado que se falar em “capacitismo digital”, que é a omissão, negligência, marginalização ou exclusão de pessoas com deficiência no uso de tecnologias e de ambientes digitais.
Abrange desde as barreiras de acessibilidade, falta de tecnologias assistivas até a ausência de representatividade de pessoas com deficiência programando e desenvolvendo soluções digitais.
Uma das pessoas que mais aborda sobre este capacitismo é a fundadora do Disability Visibility Project (DVP), Alice Wong que é escritora, ativista e pesquisadora norte-americana.
Wong, assim como outros especialistas, defende que acessibilidade não é um favor e nem caridade, e sim um direito básico!
Abaixo, alguns exemplos de capacitismo digital que devemos combater:
- Sites e aplicativos que não sigam as diretrizes de acessibilidade web do W3C (as chamadas WCAG ou Web Content Accessibility Guidelines, que já estão na versão 2.2);
- Portais e websites que não funcionam com leitores de tela, teclados braille ou outras tecnologias assistivas;
- Vídeos sem legenda, sem audiodescrição ou sem janela de Libras;
- Reuniões online e serviços de atendimento a consumidores sem soluções para atender a pessoas surdas que usam a Língua Brasileira de Sinais (Libras);
- Imagens em redes sociais sem texto alternativo (descrição de imagem);
- Softwares e websites que não permitem navegação por teclado;
- Textos com fontes pequenas e baixo contraste com o fundo de tela, dificultando o acesso por parte de pessoas com baixa visão ou com daltonismo.
8. Capacitismo Familiar
Este tipo de capacitismo é pouco difundido, apesar de ainda ser muito presente na vida das pessoas com deficiência. É aquele que ocorre dentro dos laços familiares. O capacitismo pode tanto ser manifestado como rejeição da criança com deficiência como na superproteção.
A superproteção acaba escondendo a criança ou o jovem com deficiência da sociedade, para que ela não sofra e não passe as consequências de ser uma pessoa atípica numa sociedade estruturalmente capacitista. Este excesso de zelo, que na verdade esconde um grande medo, faz com que essas crianças e jovens cresçam numa “bolha” e não se preparem para o mundo real.
Segundo a jornalista e autora Cláudia Werneck, em seu livro “Ninguém mais vai ser bonzinho”, “capacitismo familiar é a exclusão, o excesso de controle ou a superproteção vividos por pessoas com deficiência dentro da própria família, geralmente disfarçados de cuidado ou amor”.
Patricia Almeida, fundadora do Movimento Down, é um outro nome em nosso país que trata dos efeitos da superproteção e do controle familiar sobre a autonomia das pessoas com deficiência.
O sociólogo canadense Erving Goffman é um autor que também aborda sobre os perigos do capacitismo praticado dentro do lar. O autor fala do estigma que nasce dentro de casa e é levado para fora de casa, como se fosse uma marca que acompanhará esse indivíduo para onde quer ele vá.
10. Capacitismo Midiático
Esta forma de capacitismo se refere às maneiras como as pessoas com deficiência são representadas ou invisibilizadas na mídia em geral (publicidade, jornalismo, cinema etc).
No capacitismo midiático, acontecem dois fenômenos: as pessoas com deficiência não são representadas, ou seja, na escalação de atores, atrizes, repórteres, maquiadores, figurinistas, diretoras, não se contratam pessoas com deficiência. Em sua nona edição, o estudo TODXS aferiu que apenas 0,8% das peças publicitárias veiculadas em 2020 apresentavam alguma pessoa com deficiência.
A segunda forma de manifestação do capacitismo midiático é usar profissionais que não têm deficiência para atuarem como tal. Esta prática tem nome e se chama “cripface”.
O professor canadense Rod Michalko e o professor brasileiro Marcos Lima são dois nomes que discutem a representação midiática estereotipada da deficiência.
11. Capacitismo Internalizado
O capacitismo internalizado é uma manifestação do incapacitismo ou deficientismo, que foi tratado anteriormente. É uma forma de preconceito que ocorre quando a própria pessoa com deficiência passa a acreditar e a alimentar crenças limitantes que a sociedade impõe sobre seu corpo ou sua forma de pensar o mundo.
Essa internalização do estigma resulta em uma autoimagem distorcida, uma baixa autoestima, um sentimento de vergonha e, às vezes, uma negação da própria identidade.
No livro Contours of Ableism: The Production of Disability and Abledness (2009), Fiona Kumari Campbell define este capacitismo como sendo
“(…) a internalização das normas de capacidade impostas pela sociedade, que fazem com que a própria pessoa com deficiência duvide de seu valor, deseje se adaptar a padrões normativos e, frequentemente, rejeite sua própria identidade corporal e existencial.”
Quais as consequências do capacitismo?
Como comentamos anteriormente, a sequência histórica marcada por desigualdades sociais e econômicas pautam a realidade de hoje das pessoas com deficiência. São mais de 18 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem todo dia a palavra “falta”: falta acessibilidade, falta saúde, falta educação, falta trabalho, falta respeito…
As consequências do capacitismo, portanto, para a sociedade brasileira como um todo é devastadora. Um país com dimensões continentais, grande diversidade de fauna e flora e abençoado pelas condições climáticas e belezas naturais tem dois mundos divididos por abismos gigantescos.
De um lado, uma minoria populacional com privilégios e muita riqueza material; de outro, a grande massa populacional lutando para sobreviver com os poucos recursos que existem. E é nesse segundo pedaço onde reside a maioria esmagadora das pessoas com deficiência.
Segundo dados do IBGE PNAD 2022, realizado em 2022:
- A taxa de analfabetismo entre pessoas com deficiência foi de 19,5%, enquanto entre pessoas sem deficiência, foi de 4,1%;
- Apenas 25,6% das pessoas com deficiência tinham concluído pelo menos o Ensino Médio, enquanto 57,3% das pessoas sem deficiência tinham esse nível de escolaridade;
- O nível de ocupação das pessoas com deficiência foi de 26,6%, que representa menos da metade do percentual encontrado entre pessoas sem deficiência (60,7%);
- O rendimento médio recebido por pessoas ocupadas com deficiência foi de R$1.860, enquanto o rendimento de pessoas ocupadas sem deficiência foi de R$ 2.690.
Capacitismo é crime?
Depende do país. Em alguns, o capacitismo é criminalizado. Já em outros, a legislação vigente não classifica o capacitismo como ato criminoso, mas condena e estabelece condenações por conta das discriminações contra pessoas com deficiência.
Em praticamente toda parte do mundo, o capacitismo é ilegal sob leis civis de direitos humanos. O que realmente vai diferir é a configuração como crime penal ou não, a depender das leis de cada país.
Nos Estados Unidos, cuja legislação se apoia na ADA (Americans with Disabilities Act), qualquer discriminação contra pessoas com deficiência em empregos, educação, transporte, espaços públicos e privados de uso coletivo é considerada ilegal e, portanto, é proibida.
No entanto, não recebe a classificação como crime, a menos que o ato discriminatório envolva agressões, ameaças ou crimes de ódio. Nos Estados Unidos, o capacitismo é combatido por meio de ações civis, como processos judiciais, indenizações ou correções administrativas.
Na Europa, a situação é diversa, pois dependerá das leis de cada país europeu, não existindo uma única prática na União Europeia. Assim como nos Estados Unidos, as leis antidiscriminatórias da União Europeia proíbem também a discriminação por deficiência, mas a criminalização varia por país membro.
Na França, por exemplo, é parecido com o Brasil: discriminar com base na deficiência é crime, passível de penas de prisão de até 3 anos e multa. Já na Alemanha, por outro lado, proíbe-se a discriminação, mas não trata o capacitismo como crime penal, apenas como infração civil ou trabalhista.
A maioria dos países orientais, incluindo aqueles situados no continente asiático, proíbe a discriminação em lei, mas não a criminaliza penalmente como ocorre no Brasil e na França.
No Brasil, o capacitismo é considerado crime. A legislação brasileira também prevê responsabilidade civil e administrativa para violações de direitos da pessoa com deficiência.
A mesma Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), citada anteriormente, determina em seu artigo 88 que “praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência” gera uma pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, além de aplicação de multa.
A lei estabelece também que, se qualquer dos crimes previstos é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza, a pena também deve ser aplicada.
A depender do caso, a reclusão das pessoas envolvidas variará de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, além da aplicação de multa, recolhimento e apreensão do material comunicacional discriminatório e até medidas de interdição junto aos meios de comunicação.
A LBI conta ainda com artigos específicos para casos de abandono, apropriação de bens ou rendimentos, além de utilização indevida de documentos de pessoa com deficiência.
Como combater o capacitismo no Brasil?
Como foi abordado neste artigo, o capacitismo tem origens longínquas em nossa sociedade e possui raízes extremamente profundas, uma vez que intermeia toda as dimensões estruturais de nosso povo.
As práticas de boas condutas anticapacitistas, portanto, precisam ser adotadas de imediato, diariamente e por longo tempo, e pelo maior número possível de pessoas e instituições.
O combate do capacitismo deve ser encarado como um esforço de coletividade. Nunca é cedo para começar a adoção de boas práticas inclusivistas em nosso dia a dia, seja como indivíduo, seja como instituição.
Vamos a algumas dicas práticas:
Conheça melhor conteúdos relacionados à deficiência
Leia o máximo que puder sobre o universo da deficiência. Há uma centena de autores e autoras, brasileiros e estrangeiros, com obras enriquecedoras e edificantes. Se você não tem o hábito da leitura muito aguçado, assista a palestras e entrevistas dessas pessoas especialistas e abra-se para um mundo totalmente novo de conhecimento.
Vá a eventos relacionados à deficiência
Frequente seminários e eventos relacionados ao tema, principalmente se forem presenciais. O contato direto com especialistas e pessoas com deficiência é muito rico para quem pretende construir uma conduta anticapacitista. Mergulhe nestes encontros de cabeça e aproveite ao máximo.
Conviva com pessoas com deficiência
Interaja com pessoas com deficiência. Mais importante do que saber sobre as pessoas com deficiência e ouvir suas histórias e experiências a partir da própria perspectiva das pessoas com deficiência. Pergunte sem receio e tire suas dúvidas. De quebra, você pode fazer amizades para vida toda nestas interações!
Contrate pessoas com deficiência
Se você tem uma posição de liderança em uma empresa ou é proprietário ou proprietária de algum negócio, contrate (ou compre de) pessoas com deficiência. Além de contribuir no quesito da representatividade no ambiente laboral, o trabalho em equipes compostas por pessoas diversas traz novo ânimo, aguça a criatividade e estimula a inovação. O resultado costuma ser mais engajamento aliado a mais produtividade!
Invista em treinamentos
Não apenas você, mas toda a sua equipe de trabalho. E, por que não, também levar seus familiares? Quanto mais nos alfabetizamos em práticas inclusivistas, mais rápido conseguiremos rever nossas crenças capacitistas e adotar condutas mais inclusivas no nosso dia a dia. Atualmente, existem treinamentos em várias áreas. Há inclusive oficina para desenvolver a empatia!
Utilize uma comunicação inclusiva
Adote uma linguagem acessível, empática e inclusiva. Falamos o que pensamos. E pensamos o que falamos. Invista, portanto, em termos e expressões anticapacitistas e peça ajuda de amigos e familiares para te sinalizarem quando você deixar escapar uma fala preconceituosa ou discriminatória. Esse trabalho em rede, com todo mundo se ajudando, também costuma dar mais celeridade e efetividade na mudança de comportamento.
Incentive outras pessoas
Compartilhe seus avanços e seus saberes com mais pessoas. Estimule outras pessoas a seguirem seu exemplo. E peça opiniões das pessoas com deficiência sobre o que mais pode ser adotado ou otimizado. Quanto mais pessoas tivermos nessa “virada de chave”, melhor.
Conclusão
Como vimos, o capacitismo perdura nos dias de hoje e é manifestado sob várias formas, tanto em nível individual quanto em nível institucional, tanto dentro de casa quanto nas mais variadas dimensões da nossa vida.
Assim como no racismo, a neutralidade ante a este problema não contribui para seu enfrentamento. Pelo contrário, a falta de adoção de uma postura assertiva contra as várias formas de capacitismo só fazem com que ele perdure e enfraqueça nossas relações enquanto sociedade, enquanto aldeia.
Medidas anticapacitistas precisam ser adotadas de imediato e por todas as pessoas, com e sem deficiência. Essas medidas passam pela nossa forma de falar, de pensar e de interagir uns com os outros. Sim, é fato que as políticas públicas precisam contemplar o enfrentamento do capacitismo. Também é fato que as empresas, publicas e privadas, exercem um papel determinante neste processo de acessibilização e de ressignificação do conceito de deficiência. Mas, precisamos começar (e continuar) por algum lugar. Que seja, portanto, em nosso microcosmo. Dentro de casa, em nossa comunidade, junto a nossa rede de contatos.
Como já dizia Mahatma Gandhi, “seja a mudança que quer ver no mundo”. Precisamos começar e isso precisa ser agora! Se cada um fizer sua parte, no seu microcosmo, esses pequenos territórios impactados começarão a se encostar um nos outros e a virar um território maior. E assim sucessivamente.
Todo avanço que alcançarmos no combate ao capacitismo, terá valido a pena. Cada pessoa que se junta ao movimento anticapacitista conta.
“A transformação começa quando paramos de tentar nos encaixar e começamos a mudar o espaço ao nosso redor.”
— Simi Linton, em Claiming Disability: Knowledge and Identity
Escrito por:
Rodrigo Credidio– Consultor de Acessibilidade e Inclusão